quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Samba de roda e candomblé preservam cultura de matriz africana em Cachoeira

POR MIRIA ALVES

Localizada a duas horas de distância de Salvador, a cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, é caracterizada por suas formas de expressões culturais afrodescendentes e pela cultura popular dos povos antigos de terreiros, remanescentes de quilombos. A cidade preserva diversidades de expressões culturais da diáspora negra, como os ternos de reis, o terno do acarajé, o negro fugido, a Irmandade da Boa Morte, o samba de roda, entre outros. Essas demonstrações presentes em Cachoeira são resultados da luta de pessoas como Dona Dalva Damiana e Edvaldo Buda.

Dona Dalva Damiana de Freitas (84) lutou contra a pobreza e contra a invisibilidade das mulheres negras e suas manifestações culturais no Recôncavo Baiano. Neta de africanos que sobreviveram ao sistema colonial escravista, nasceu e mora na cidade de Cachoeira.  Pioneira na luta pela preservação cultural, constituiu o Grupo de Samba de Roda Suerdieck, em novembro de 1958. O primeiro grupo de samba de roda criado para apresentações públicas, pois, até então, o samba era feito em locais particulares e denominado como “samba de vizinho”, “samba de caruru” ou “samba de candomblé”.

Através da parceria da Associação Cultural Dalva Damiana de Freitas com a Associação de Pesquisa em Cultura Popular e Musica Tradicional do Recôncavo, foi solicitado ao IPHAN o registro do Samba de Roda do Recôncavo Baiano no Livro das Formas de Expressão, institucionalização de patrimônio. O Samba é a primeira expressão musical no Brasil a receber o título de Patrimônio Cultural Imaterial Nacional e de Obra Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela UNESCO.


 Dona Dalva trabalhou na indústria de charutos, para ajudar na manutenção da família, desde os 16 anos.  Ela conta como alguns instrumentos de trabalho eram usados em substituição aos itens para atividade escolar. “As folhas pra fazer o charuto era o caderno, a faca era a caneta e as ‘taubinhas’ era a borracha pra apagar os erros”. As tabuinhas a que Dona Dalva se refere são dois pedaços de madeira pequenos, usados para esticar as folhas de fumo na produção do charuto. Hoje, elas são instrumentos musicais nas mãos das sambadoras de seu grupo.

“Deus me deu tudo nas mãos, pra que eu fizesse todos rir, porém, eu não chorar”

Dona Dalva afirma que desde o começo de sua iniciativa sofre muito preconceito, por ser mulher negra e mãe solteira. Conta que chegou a adoecer em decorrência do sofrimento: “Eu sofri demais, calúnias da terra tremer, eu fui pra cima da cama, fiquei doente, quase morro”. “Deus me deu tudo nas mãos pra que eu fizesse todos rir, porém eu não chorar”. Teve de lidar com as rivalidades de outros grupos surgidos na região, que segundo ela tentavam humilhar e até mesmo lhe agredir.

O Samba de Roda de Dona Dalva é constituído por sambadores economicamente pobres, e poucos tiveram oportunidade de frequentar um colégio regular. Criando estratégias diversas de reação à pobreza e conscientes da importância de preservar o Samba de Roda, transmitem-no às novas gerações, oferecendo oportunidade de interação com a música, a cultura e a educação. A criação do grupo, constituído por crianças e adolescentes, denominado Samba de Roda Mirim Flor do Dia, foi resultado desta preocupação em resguardar esse patrimônio cultural. O plano ganhou uma extensão com o projeto Samba de Roda nas Escolas. Tem por objetivo levar ao conhecimento dos estudantes de escolas públicas a importância de manter o samba de roda.

Dona Dalva Damiana foi indicada ao Título de Doutora Honoris Causa pelo Centro de Artes Humanidades e Letras da UFRB, pela contribuição importante para o reconhecimento do samba de roda. “Eu tenho que agradecer a Deus, ao poder, ao reconhecimento que de longe vem e de longe me traz e que de longe me abraça”, disse Dona Dalva sobre a indicação ao título.

O CANDOMBLÉ

A valorização das tradições culturais de matriz africana está também na religiosidade. O Terreiro de Candomblé Jeje Kwé Cejá Hundé, mais conhecido como Roça do Ventura, um dos mais antigos do país, foi alvo de investidas de grileiros que destruíram 14 hectares de mata nativa, e santuários dos Orixás. Em protesto a essa agressão, Edvaldo Santos de Jesus, o Buda (44), instituiu na cidade de Cachoeira a caminhada pela liberdade religiosa.


Ogã da Roça do Ventura, neto de escravos africanos, Buda diz ser difícil a aceitação do povo de santo na cidade de Cachoeira. A prática do candomblé foi considerada crime por muitos anos, sendo associada ao charlatanismo. “O povo de santo tem medo de se assumir do candomblé, pra não sofrer preconceito. Hoje em dia, nós temos que tomar medo, não é da polícia, mas, do mal evangélico”, declara.

“o que eu peço é respeito e o direito de ir e vir”

A II Caminhada do Povo de Santo pela Liberdade Religiosa reuniu cerca de mil pessoas e teve cobertura da imprensa de Salvador. Contou com apresentações da banda juvenil do Olodum, além de grupos locais como o Samba de Roda Suerdieck e o Grupo Jeje Nagô. A caminhada acontece no ultimo domingo do mês de novembro.  Buda informa que não recebeu apoio da prefeitura da cidade na produção da caminhada,  com ajuda financeira da Secretaria Estadual de Igualdade Racial através de um edital.

O turismo religioso é uma das principais fontes de renda da cidade de Cachoeira, como as festas da Boa Morte, dos Navegantes e visitações a terreiros de candomblés. Buda se queixa da omissão dos poderes públicos em casos de ataques aos terreiros de candomblé como o ocorrido no Ventura, que tem grande importância para a cidade, já que as precursoras da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte foram mães e filhas de santos do Terreiro. “O que eu peço é respeito e o direito de ir e vir”.

Buda faz uma crítica a artistas baianos que cantam músicas e fazem rituais de candomblé no carnaval, o que, segundo ele, descaracteriza e banaliza a tradição religiosa. “Acho errado o que Daniela (Mercury) faz: cantar cantiga de candomblé em pleno trio, e também acho errado o que Carlinhos Brown faz: cortar o galo na frente de todo mundo, ali, pra começar as coisas na avenida”. Segundo ele a relação de alguns artistas baianos com o candomblé é meramente comercial.

Edivaldo Buda acredita que o preconceito vem da falta de informação das pessoas sobre o candomblé. As escolas devem ensinar sobre as religiões de matrizes africanas, assim como ensinam sobre o cristianismo. “Que passe a explicar quem é quem, quem é vodu, o que é pai de santo, o que quer dizer ogã”.

O trabalho de preservação feito por pessoas como a sambadora Dalva Damiana e o ogã Edvaldo Buda torna a cultura de matriz africana do Recôncavo Baiano conhecida em todo o mundo.

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