POR MAELÍ SOUZA
Dona Dalva Damiana, 84 anos, foi indicada recentemente ao título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, em reconhecimento ao seu trabalho com o samba de roda. Há 53 anos, ela organizou um grupo de sambadeiras na fábrica de charutos, onde trabalhava, na cidade de Cachoeira. As mulheres dançavam com as roupas do trabalho, e aos poucos as apresentações foram tomando forma, se organizando. Hoje, o Samba de Roda Suerdieck é um grupo de renome internacional, praticante de uma expressão musical tombada pelo IPHAN e pela UNESCO como patrimônio cultural do Brasil e patrimônio oral e imaterial da humanidade, respectivamente.
Na fábrica onde trabalhava, enquanto as colegas faziam sua produção do dia, Dona Dalva compunha sambas e dançava. No final do expediente, enquanto todos entregavam suas atividades prontas, ela se via de mãos vazias e pedia às companheiras que, “pelo amor de Deus”, a ajudassem. Todos os dias a cena se repetia, no final de expediente e era aquela choradeira de Dona Dalva pedindo ajuda. Foi assim que o grupo de samba começou a ser articulado.
Em casa, Dona Dalva enfrentou algumas dificuldades com os familiares. Primeira neta da família, foi criada com a avó que, mesmo tendo poucas condições financeiras, fez de tudo para criá-la da melhor forma possível, dando-lhe a educação básica e ensinando-lhe os valores familiares. Valores esses que Dona Dalva, hoje bisavó, soube passar muito bem aos seus filhos. Mas o gosto do samba não foi herdado da família. Desde criança gostava de brincar com suas bonecas, no pouco tempo que tinha, encenando valsas, ternos e sambas.
DIFICULDADES
Os obstáculos foram muitos. Criou cinco filhos, casou todos eles, deu educação e até hoje, mesmo tendo enfrentado problemas dentro da família, diz ter sido uma boa filha e de ser boa mãe, sem que ninguém diga o contrário. No início, enfrentou muita discriminação por ser mulher e negra, numa sociedade extremamente conservadora, que dava pouco espaço às mulheres. Chegou, muitas vezes, a passar mal antes de apresentações, indo parar no hospital, consequência de rejeição das pessoas. Enquanto algumas apoiavam, outras tantas desfaziam de seus esforços.
Como um dos resultados desses dissabores, adquiriu um problema de coração e hipertensão, impossibilitando-a de viajar para acompanhar seu grupo e divulgar sua dança. Essas limitações não a impedem de trabalhar, pois as pessoas vêm até ela para aprender sua dança, e quando voltam sempre trazem mais pessoas para admirar esta anciã tão humilde. Pequena no tamanho, porém grande em conhecimento.
Atualmente, Dona Dalva, juntamente com outros membros da Associação Dalva Damiana de Freitas, está com um trabalho de divulgação nas escolas. Em uma de suas visitas, acompanhamos sua conversa com as crianças. Ela se esforçou para passar conselhos e valores aos pequenos, bem como a divulgação do Samba de Roda Mirim Flor do Dia, que criou em 1980, juntamente com suas filhas, na tentativa de prover sambadores e sambadoras para o Samba de Roda Suerdieck, que é a categoria adulta.
Quando começaram esse trabalho, houve um pouco de rejeição por parte de alguns professores, por acharem que o samba estava associado ao candomblé, quando na verdade não tem ligação nenhuma. Sua intenção era divulgar a cultura, a dança, e não fazer um apelo religioso. Mas aos poucos foram entendendo sua visão, e hoje as portas se abrem para que esse projeto vá adiante.
TRADIÇÃO FAMILIAR
Impressionados com esse trabalho, voltamos à sua casa para saber um pouco mais sobre esse projeto. Quem nos recebeu foi Ana Olga, 51 anos, sua filha caçula e atual responsável pelo samba de roda mirim. Orgulhosa, ela fala do trabalho desenvolvido por sua mãe e do qual também participa, juntamente com seus filhos. Conta que também enfrentou dificuldades juntamente com a mãe, mas o amor pelo samba lhe deu forças pra continuar. Todo o trabalho, desde o início, foi desenvolvido em família. São quatro gerações do Samba de Roda Suerdieck.
Sua intenção, ao divulgar nas escolas, vai além do interesse em alimentar o samba de roda mirim. Ela quer muito mais. Quer passar valores para as crianças, contribuir para seu crescimento saudável no que diz respeito ao caráter. Ensinar a eles, através do samba, “que cultura não é essa nova onda musical que está surgindo por aí, que deturpa os valores familiares induzindo as crianças a praticarem atos não apenas violentos, mas também obscenos”. Ela fala com tristeza de uma cena em que presenciou os pais colocando músicas pornográficas e incentivando os filhos a dançarem, e acrescenta que o samba ensina a criança a respeitar os mais velhos, ensina a falar coisas e palavras bonitas, de carinho e respeito aos outros.
Ver sua mãe, aos 84 anos, indicada a um título tão importante a enche de orgulho, pois é o reconhecimento de quem fez tanto, e ainda faz, pelos outros, para promover o bem estar social e não a autopromoção. “Afinal, são quatro gerações que estão muito bem instruídas a levar adiante essa cultura e esses valores tão importantes para a sociedade”, diz ela.
A despeito de seus problemas de saúde e no auge de seus 84 anos, dona Dalva esbanja vigor e alegria, principalmente quando se trata do grupo de samba que fundou e o qual se empenha ainda hoje em divulgar. As dificuldades ainda são muitas, pessoas ainda a tratam com descaso e desrespeito, mas seus objetivos são maiores, sua força suplanta os obstáculos. Ela vê isso como uma missão que Deus lhe deu: a de dar alegria para o povo, mesmo que esse mesmo povo muitas vezes retribua essa alegria com desprezo.
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